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10 Mandamentos do Chimarrão
O chimarrão, mais do que uma bebida típica, é um elemento simbólico da identidade sul-rio-grandense e de outras regiões do Cone Sul, como Uruguai, Paraguai e Argentina. A seguir, apresentamos dez mandamentos populares do chimarrão, entremeados por uma reflexão teórica sobre seus significados e implicações culturais. Esses mandamentos vão além do humor: revelam códigos de conduta que integram o universo da tradição gaúcha e o pertencimento social.
1. Não peças açúcar no mate
O chimarrão é tradicionalmente amargo, símbolo da autenticidade e da resistência cultural. Pedir açúcar é interpretado como um desrespeito à tradição. Como destaca Bourdieu (1983), práticas culturais possuem valor simbólico e marcar fronteiras de distinção social. O amargo é o “sabor da iniciação”, reservado àqueles que pertencem verdadeiramente à cultura do mate.
2. Não digas que o chimarrão é anti-higiênico
O ato de compartilhar a cuia é, segundo Mary Douglas (1978), uma forma de "comensalidade líquida", em que a partilha simboliza confiança, vínculo e hospitalidade. Criticar essa prática implica desvalorizar o tecido social construído em torno do ritual do mate.
3. Não digas que o mate está quente demais
O calor da água, frequentemente em torno de 70º a 80ºC, tem função simbólica e sensorial. Para o gaúcho, o calor é sinal de vigor, força e respeito à tradição. Reclamar da temperatura é desconhecer os códigos locais. Segundo Geertz (1973), interpretar uma cultura exige compreender os significados que seus próprios membros atribuem às práticas.
4. Não deixes um mate pela metade
O chimarrão não é um gole, é um ritual. A cuia representa compromisso com quem a oferece e com a roda que a compartilha. Interromper esse ciclo é quebrar a reciprocidade, um valor central na lógica da dádiva descrita por Marcel Mauss (1925).
5. Não te envergonhes do "ronco" no fim do mate
O “ronco” da bomba ao final do chimarrão é sinal de respeito: mostra que se tomou tudo. Diferente do comportamento urbano de discrição sonora, aqui o barulho finaliza um ciclo e indica prontidão para passar a vez.
6. Não mexas na bomba
A bomba, assim como a cuia, é símbolo de hierarquia e estabilidade. Alterá-la é visto como falta de etiqueta. Nas palavras de Norbert Elias (1994), a civilidade se constrói por meio de normas internalizadas, e a posição da bomba é uma delas.
7. Não alteres a ordem do mate
A roda do chimarrão é um microcosmo da sociedade tradicional: tem sua lógica, sua ordem e seus ritos. Desrespeitar a ordem é romper o fluxo simbólico de pertencimento. Esperar sua vez é um gesto de humildade e respeito coletivo.
8. Não "durmas" com a cuia na mão
A roda de chimarrão exige participação ativa. O silêncio contemplativo é reservado ao mate solitário. Em grupo, o tempo é compartilhado. A demora em passar a cuia pode ser vista como uma quebra da coesão do grupo.
9. Não condenes o dono da casa por tomar o 1º mate
O primeiro mate é o mais forte, o mais amargo e por vezes o menos agradável. O anfitrião que o toma está, na verdade, demonstrando hospitalidade. Trata-se de um gesto de cuidado e acolhimento, e não de egoísmo.
10. Não digas que chimarrão dá câncer na garganta
Discutir questões médicas em um momento de sociabilidade tradicional é um ato de desritualização. O chimarrão é símbolo de vida compartilhada. Como afirma o sociólogo Roberto DaMatta (1985), há momentos em que a lógica do “coração” supera a lógica da “razão”. O chimarrão pertence ao espaço do afeto e da identidade, não da objetivação técnica.
Mais que uma bebida, o chimarrão é um rito que comunica valores, afetos e pertencimento. Esses “mandamentos” expressam, com humor e sabedoria popular, o que a teoria sociocultural já nos ensina: rituais cotidianos têm poder de estruturar vínculos sociais e produzir identidades. Quem compreende o chimarrão como código simbólico, respeita não apenas uma tradição, mas todo um modo de ser e viver no sul do Brasil.
